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Unidade 12
Filosofia da Ciência

Ponto de partida

  1. A Ciência pode garantir a veracidade das suas teorias?

  2. As teorias científicas explicam a realidade ou os cientistas interpretam a realidade procurando ajustá-la às suas teorias?

  3. Quais são os limites da Ciência?

  4. Qual o papel da Filosofia diante do desenvolvimento das ciências?

Criada na Antiguidade, como instrumento para a Filosofia e as ciências, a Lógica aprofundou seu caráter formal, no decorrer do tempo, em busca de uma linguagem científica, objetiva e precisa. Essa é uma tendência importante do pensamento contemporâneo, marcado também pelo desenvolvimento de uma área específica da Epistemologia, a Filosofia da Ciência.

Seus objetos de estudo são problemas como os limites e as possibilidades da Ciência, as características que a diferenciam de outras formas de conhecimento e a validade dos métodos científicos. Conheça, a seguir, alguns pensadores e conceitos relacionados a essa área da Filosofia.


Derby Museum and Art Gallery, Derby

Ao longo do tempo, a palavra ciência nomeou diferentes formas de conhecimento. Porém, a partir do século XVII, os métodos matemático e experimental, bem como a associação da tecnologia ao conhecimento, forjaram a Ciência moderna. Esse novo modelo adotou a investigação metódica de problemas, por meio de procedimentos empíricos (observações, hipóteses, experimentos) e de cálculos matemáticos, em busca de leis universais ocultas sob os fenômenos particulares. Tal esforço resultou em teorias científicas, das quais se esperava o esclarecimento dos fenômenos atuais, mas também a explicação e, até mesmo, a previsão de novos fenômenos.


Nesse contexto, a Ciência passou a ser vista, cada vez mais, como uma forma de conhecimento superior a todas as outras. Essa visão teve seu auge no século XIX, com o positivismo, que contribuiu significativamente para a construção do mito do cientificismo, ou seja, a crença de que a Ciência é um saber neutro, com poder ilimitado para decifrar a realidade e, assim, produzir verdades inquestionáveis.

REMPS, DOMENICO. O alquimista descobrindo o fósforo. 1771. 1 óleo sobre tela, color., 1270 cm x 1061 cm. Derby Museu e Galeria de Arte, Derby.

Positivismo

O filósofo francês Auguste Comte e os defensores do positivismo, inaugurado por ele, acreditavam no progresso do conhecimento, desde origens consideradas primitivas até a etapa, supostamente ideal, representada pela Ciência moderna. Segundo essa visão, o conhecimento seria acumulativo e, portanto, as teorias científicas deveriam ter validade universal, mostrando-se aptas a explicar diferentes fenômenos por meio de leis gerais.

Além disso, em lugar da produção de sistemas filosóficos, abrangendo os mais diversos objetos e fenômenos, em busca de suas causas, Comte propôs que o estudo de cada um deles fosse realizado por uma ciência positiva distinta, restringindo-se à busca de explicações para seu funcionamento. Nesse contexto, ele destinava à Filosofia o papel de avaliar os métodos científicos, segundo princípios racionais. Acreditava que, dessa maneira, ao se afastar de concepções metafísicas, ela alcançaria o estágio de Filosofia positiva.

INJALBERT, Jean Antoine. Monumento a Auguste Comte. 1902. 3 esculturas em mármore. Praça da Sorbonne, Paris.

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Monumento representando Comte (centro), sua musa, Clotilde de Vaux, caracterizada como “Madona com a criança” (esquerda), e proletário tentando aprender (direita)

Comte utilizava a expressão positivo(a) para designar as formas de conhecimento que julgava terem atingido o auge do progresso.

Para ler e refletir

O conceito de progresso científico é central no positivismo. Segundo Comte, esse progresso teria resultado na autonomia de diferentes ciências, separando-as do “tronco” inicial que as originou: a Filosofia. No texto a seguir, ele trata da divisão do conhecimento em diferentes ciências positivas, voltadas ao estudo de objetos específicos, e caracteriza a Filosofia positiva, atribuindo-lhe o estudo dos métodos científicos.

[...] o caráter fundamental da filosofia positiva é tomar todos os fenômenos como sujeitos a leis naturais invariáveis, cuja descoberta precisa e cuja redução ao menor número possível constituem o objetivo de todos os nossos esforços [...]. Cada um sabe que, em nossas explicações positivas, até mesmo as mais perfeitas, não temos de modo algum a pretensão de expor as causas geradoras dos fenômenos [...]. Pretendemos somente analisar com exatidão as circunstâncias de sua produção e vinculá-las umas às outras, mediante relações normais de sucessão e de similitude.
Assim, para citar o exemplo mais admirável, dizemos que os fenômenos gerais do universo são explicados, tanto quanto o podem ser, pela lei de gravitação newtoniana [...]
No estado primitivo de nossos conhecimentos, não existe nenhuma divisão regular em nossos trabalhos intelectuais. Todas as ciências são cultivadas simultaneamente pelos mesmos espíritos. Esse modo de organização dos estudos humanos [...] altera-se pouco a pouco, na medida em que diversas ordens de concepções se desenvolvem. Por uma lei cuja necessidade é evidente, cada ramo do sistema científico se separa insensivelmente do tronco [...] quando chega ao ponto de poder ser a ocupação exclusiva da atividade permanente de algumas inteligências. [...] Numa palavra, a divisão do trabalho intelectual, aperfeiçoada progressivamente, é um dos atributos característicos mais importantes da filosofia positiva. [...]
[...] Que uma classe nova de cientistas, preparados por uma educação conveniente [...], se ocupe unicamente, considerando as diversas ciências positivas em seu estado atual, em determinar exatamente o espírito de cada uma delas, em descobrir suas relações e seus encadeamentos, em resumir, se for possível, todos os seus princípios próprios num número menor de princípios comuns, conformando-se sem cessar às máximas fundamentais do método positivo. Ao mesmo tempo, outros cientistas, antes de entregar-se a suas especialidades respectivas, devem tornar-se aptos, de agora em diante, graças a uma educação abrangendo o conjunto dos conhecimentos positivos, a tirar proveito das luzes propagadas por esses cientistas votados ao estudo de generalidades e, reciprocamente, a retificar seus resultados, estado de coisas de que os cientistas atuais se aproximam cada vez mais. [...]
[...] Enquanto as diferentes ciências positivas foram pouco desenvolvidas, suas relações mútuas não podiam possuir bastante importância para dar lugar, ao menos duma maneira permanente, a uma classe particular de trabalho, ao mesmo tempo que a necessidade desse novo estudo era muito menos urgente. Mas hoje cada uma dessas ciências tomou separadamente extensão suficiente para que o exame de suas relações mútuas possa dar lugar a trabalhos contínuos, ao mesmo tempo que essa nova ordem de estudos torna-se indispensável para prevenir a dispersão das concepções humanas.
Tal é a maneira pela qual concebo o destino da filosofia positiva no sistema geral das ciências positivas propriamente ditas. [...]

COMTE, Auguste. Curso de Filosofia positiva. São Paulo: Nova Cultural, 2005. p. 26, 31, 32 e 33 (itens IV e VII).

votados: dedicados.


Transcreva o trecho do texto que descreve a atuação prevista para o filósofo no âmbito da Filosofia positiva.


Reflexão em ação

  1. Considerando seus conhecimentos sobre a Filosofia, posicione-se criticamente em relação à proposta do positivismo de reduzi-la a uma Filosofia da Ciência, voltada ao estudo e à avaliação dos métodos científicos.

  2. Qual o papel da Filosofia no contexto atual, marcado pelo desenvolvimento e pela especialização cada vez maior do conhecimento científico?


Verificabilidade

Na década de 1920, alguns filósofos e cientistas da cidade de Viena, na Áustria, formaram um grupo de pesquisa com o objetivo de fundamentar uma concepção científica do mundo, de caráter empirista, contrapondo-se a especulações metafísicas. Esse grupo, conhecido como Círculo de Viena, era formado por Moritz Schilick, Rudolf Carnap, Hans Hahn, Otto Neurath, Olga Hahn-Neurath e outros. Porém, com a perseguição nazista, seus membros se dispersaram, tendo suas pesquisas divulgadas principalmente nos Estados Unidos e na Inglaterra.

Os pensadores de Viena formaram um movimento denominado neopositivismo, positivismo lógico ou empirismo lógico. Propunham a aplicação de procedimentos da Lógica e da Matemática aos métodos e à linguagem das ciências, para garantir clareza e precisão às suas teorias. Além disso, consideravam a experiência como o critério de verdade na avaliação das teorias científicas, as quais, por sua vez, seriam expressas em forma de proposições (afirmações ou negações logicamente estruturadas).

Sendo assim, afirmavam que as ciências deveriam se ocupar apenas de proposições com significação, ou seja, aquelas que se referissem estritamente aos fenômenos observáveis. Desse modo, estabeleciam a noção de verificabilidade, segundo a qual uma proposição teria sentido para a comunidade científica apenas quando seus membros pudessem apontar as possibilidades de verificar de modo empírico sua verdade ou falsi- dade. As proposições que não atendessem a esse critério deveriam ser rejeitadas pela Ciência.

Fachada do edifício principal da Universidade de Viena, 2015

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Para ler e refletir

Leia, a seguir, um trecho do prefácio da obra A concepção científica do mundo, importante publicação dos membros do Círculo de Viena.

Em torno de Schlick reuniu-se com o passar dos anos um círculo que aliou os diferentes esforços em direção de uma concepção científica do mundo. [...] Nenhum dentre eles é o que se denomina um filósofo “puro”; todos trabalharam em um domínio científico particular, e na verdade provêm de diferentes ramos da Ciência e originariamente de diferentes atitudes filosóficas. Com o correr dos anos, porém, aflorou uma crescente unidade, efeito da atitude especificamente científica: “o que pode ser dito, pode ser dito claramente” (Wittgenstein). Se há diferenças de opinião, um acordo é afinal possível e, portanto, também requerido. Mostrou-se cada vez mais nitidamente que o objetivo comum a todos era não apenas uma atitude livre de metafísica, mas antimetafísica.
Ainda em relação às atitudes frente às questões da vida percebeu-se uma notável concordância, embora tais questões não estivessem em primeiro plano entre os temas discutidos no Círculo. Estas atitudes mantêm uma afinidade mais estreita com a concepção científica do mundo do que à primeira vista, de um ponto de vista puramente teórico, poderia parecer. Assim, por exemplo, os esforços pela reorganização das relações econômicas e sociais, pela unificação da humanidade, pela renovação da escola e da educação, mostram uma conexão interna com a concepção científica do mundo. É manifesto que estes esforços são bem-vindos e encarados com simpatia pelos membros do Círculo e também ativamente promovidos por alguns.
O Círculo de Viena não se satisfaz em realizar um trabalho coletivo ao modo de um grupo fechado, mas se esforça igualmente por entrar em contato com os movimentos vivos do presente, na medida em que estes são simpáticos à concepção científica do mundo e renegam a metafísica e a teologia.

HAHN, Hans; NEURATH, Otto; CARNAP, Rudolf. A concepção científica do mundo: o Círculo de Viena. Cadernos de História e Filosofia da Ciência, v. 10, p. 5-20, 1989.

Ludwig Wittgenstein: filósofo austríaco, do século XX, que se destacou nas áreas de Lógica, Filosofia da Matemática, Filosofia da Linguagem e Filosofia da Mente. Sua obra teve duas fases, das quais a primeira influenciou o neopositivismo.

Discuta as seguintes questões com os colegas. Depois, registre as conclusões a que vocês chegarem, justificando-as por meio de exemplos e argumentos.

a) De acordo com o texto, a visão científica de mundo, buscada pelos neopositivistas, modifica as atitudes humanas em relação “às questões da vida”. Você concorda com essa afirmação?

b) O texto afirma haver uma conexão interna entre a visão científica de mundo e os “esforços pela reorganização das relações econômicas e sociais, pela unificação da humanidade, pela renovação da escola e da educação”. Você considera essa afirmação verdadeira e atual para a sociedade em que vive?


Falseabilidade

Ainda no século XX, o filósofo austríaco Karl Popper dedicou-se ao problema da demarcação da Ciência, ou seja, buscou um critério capaz de distinguir o conhecimento científico dos demais tipos de conhecimento. Nessa busca, ele contestou o conceito de verificabilidade, estabelecido pelo Círculo de Viena. Afinal, os métodos científicos são indutivos, ou seja, partem de casos particulares para estabelecer leis gerais. Porém, segundo Popper, um cientista jamais conseguiria analisar empiricamente todos os casos individuais, a fim de comprovar a ausência de exceções às leis gerais enunciadas por uma teoria.

Para fundamentar sua crítica à aplicação da verificabilidade ao método indutivo, Popper recorreu a um exemplo que se tornou célebre: ainda que um cientista analisasse inúmeros gansos e verificasse neles a cor branca, não poderia concluir que “todos os gansos são brancos”. Afinal, a existência de um único ganso de outra cor seria suficiente para contestar a universalidade dessa proposição e nem mesmo a grande amostra de animais analisados poderia garantir que não existissem gansos de outras cores.

Além disso, Popper denunciava que, diante da impossibilidade de analisar todos os casos particulares, a fim de atestar a universalidade de uma teoria, os cientistas utilizavam uma estratégia para tentar tornar suas teorias imunes a contestações. Trata-se de um procedimento denominado argumento ad hoc. Ele consiste em excluir do âmbito da teoria os objetos que poderiam falseá-la. Por exemplo, retomando o caso dos gansos, um possível argumento ad hoc para manter a proposição “Todos os gansos são brancos.” seria concluir que um ganso de outra cor não é um ganso.

No entanto, Popper defendia o critério da falseabilidade para a avaliação das teorias científicas. Segundo esse critério, uma teoria só poderia ser considerada científica se ela estivesse aberta à demonstração da sua falsidade, isto é, desprovida de argumentos ad hoc. Enquanto a falsidade dessa teoria não fosse demonstrada, ela continuaria válida, mas, se isso ocorresse, ela seria substituída por outra, também falseável, o que favoreceria o progresso do saber. Sendo assim, Popper não considerava as teorias científicas verdadeiras e definitivas, mas prováveis e provisórias.

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Para ler e refletir

No texto a seguir, Popper discorre sobre a avaliação e a refutação das teorias científicas.

A teoria que não for refutada por qualquer acontecimento concebível não é científica. A irrefutabilidade não é uma virtude, como frequentemente se pensa, mas um vício. [...]
Todo teste genuíno de uma teoria é uma tentativa de refutá-la. A possibilidade de testar uma teoria implica igual possibilidade de demonstrar que é falsa. Há, porém, diferentes graus na capacidade de se testar uma teoria: algumas são mais “testáveis”, mais expostas à refutação do que outras; correm, por assim dizer, maiores riscos. [...]
Algumas teorias genuinamente “testáveis”, quando se revelam falsas, continuam a ser sustentadas por admiradores, que introduzem, por exemplo, alguma suposição auxiliar ad hoc, ou reinterpretam a teoria ad hoc de tal maneira que ela escapa à refutação. Tal procedimento é sempre possível, mas salva a teoria da refutação apenas ao preço de destruir (ou pelo menos aviltar) seu padrão científico. [...]
Pode-se dizer, resumidamente, que o critério que define o status científico de uma teoria é sua capacidade de ser refutada ou testada.
POPPER, Karl. Conjecturas e refutações. Brasília: Editora UnB, 1980. p. 5. Disponível em: <http://people.ufpr.br/~borges/publicacoes/notaveis/ Popper.pdf>. Acesso em: 18 ago. 2015.

Estabeleça distinções entre o princípio neopositivista de verificabilidade e o de falseabilidade, indicado por Popper.

Reflexão em ação

Com base na leitura do texto a seguir, responda às questões propostas.

“Que espécie de gente vive por aqui?”
“Naquela direção”, explicou o Gato, acenando com a pata direita, “vive um Chapeleiro; e naquela direção”, acenando com a outra pata, “vive uma Lebre de Março. Visite qual deles quiser: os dois são loucos.”
“Mas não quero me meter com gente louca”, Alice observou.
“Oh! É inevitável”, disse o Gato; “somos todos loucos aqui. Eu sou louco. Você é louca.”
“Como sabe que sou louca?” perguntou Alice.
“Só pode ser”, respondeu o Gato, “ou não teria vindo parar aqui.”
Alice não achava que isso provasse coisa alguma; apesar disso, continuou: “E como sabe que você é louco?”
“Para começar”, disse o Gato, “um cachorro não é louco. Admite isso?”
“Suponho que sim”, disse Alice.
“Pois bem”, continuou o Gato, “você sabe, um cachorro rosna quando está zangado e abana a cauda quando está contente. Ora, eu rosno quando estou contente e abano a cauda quando estou zangado. Portanto sou louco.”
CARROLL, Lewis. Alice: aventuras de Alice no país das maravilhas & através do espelho e o que Alice encontrou por lá. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. p. 105-106.

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  1. O método utilizado pelo Gato para chegar à proposição “somos todos loucos aqui” é indutivo ou dedutivo? Explique o porquê.

  2. Pode-se dizer que o Gato recorreu a um argumento ad hoc para concluir que Alice era louca? Explique o porquê.

  3. Ao admitir a proposição “um cachorro não é louco”, o Gato agiu de acordo com o princípio de verificabilidade ou de falseabilidade? Justifique sua resposta.

Revolução científica

Entre os séculos XIX e XX, novas descobertas científicas contribuíram para abalar algumas teorias aceitas pela tradição. Por exemplo, na área da Física, o modelo científico por excelência era a Física newtoniana, fundamentada nas leis do movimento e da gravitação universal. Surgiram, então, a Física de Einstein, fundamentada na Teoria da Relatividade, e a Física Quântica, inaugurada por Heisenberg, as quais modificaram a compreensão newtoniana de espaço e tempo como absolutos. Uma das consequências disso, no âmbito da Filosofia da Ciência, foi o surgimento da tese de que as ciências se transformam por meio de revoluções. A seguir, você conhecerá as visões de dois pensadores contemporâneos sobre as revoluções científicas.

Thomas Kuhn

Na segunda metade do século XX, o físico estadunidense Thomas Kuhn trouxe uma importante contribuição para a Filosofia da Ciência. Considerando que as ciências se modificam por meio de revoluções, ele destacou as diferentes fases que constituiriam seu desenvolvimento.

PIERCE, Bill. Ainda reverberando... múltiplas imagens de Thomas Kuhn.

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Inicialmente, surgiria um paradigma, ou seja, um modelo explicativo da realidade, formado por leis e valores considerados fundamentais. Então, viria um período denominado ciência normal, em que os membros de uma comunidade científica empregariam esse paradigma para solucionar problemas, orientar métodos, investigações e teorias.

Nesse período, eles se ocupariam de “operações de limpeza”, ou seja, de corrigir possíveis inconsistências do paradigma em uso. Porém, em algum momento, a ocorrência de anomalias, isto é, de um considerável número de problemas sem solução, colocaria em crise a ciência normal. Tal fato geraria uma revolução científica, por meio da ruptura com o paradigma aceito e da afirmação de um novo paradigma.

Essa visão se opôs de forma radical ao ideal positivista de progresso, resultando na afirmação de que não há uma continuidade evolutiva entre os diferentes modelos científicos, mas, sim, ruptura e descontinuidade. Afinal, segundo Kuhn, apesar de todos os ajustes que um modelo de Ciência procurasse incorporar, ele ainda haveria de enfrentar problemas insolúveis. Justamente por isso, o pensador não adotava a verificabilidade nem a falseabilidade como critérios para avaliar as teorias científicas. Ele ressaltava que a nova ciência viria sempre de um novo paradigma, algo maior do que uma teoria e anterior a ela. Ou seja, um conjunto de princípios capaz de dirigir o olhar humano e dar novos rumos às investigações sobre a realidade. Dessa forma, por exemplo, a Física de Einstein ou a Quântica não teriam surgido em continuidade à Física newtoniana, mas pela ruptura com ela, orientando-se por novos paradigmas.

Porém, o surgimento de novos paradigmas seria sempre o resultado de crises e tensões no meio científico. Afinal, os cientistas não estariam predispostos a abrir mão de suas teorias, pois, no mundo capitalista contemporâneo, a Ciência não se desvincula de interesses socioeconômicos e até mesmo políticos. Isso leva os cientistas a se empenharem para manter seu prestígio profissional, justificar o financiamento às suas atividades e vencer disputas com outras instituições de pesquisa, por exemplo.

Atividades

Em jornais e revistas atuais, analise uma reportagem sobre disputas teóricas e econômicas ligadas a pesquisas científicas. Procure identificar os interesses envolvidos e os resultados dessa disputa para a vida das pessoas.

Gaston Bachelard

O conceito de revolução científica também se relaciona com a obra do filósofo francês Gaston Bachelard. Ele se dedicou ao estudo da história das ciências, dando particular atenção às novas descobertas que marcaram a Ciência contemporânea, em contraponto aos modelos científicos tradicionais. Assim como Kuhn, Bachelard não considerava o saber científico acumulativo, mas, sim, descontínuo, resultante de rupturas epistemológicas, geradas por novas descobertas que superavam as anteriores.

Fotografia de Gaston Bachelard, 1965

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Entendia a Ciência como uma construção inacabada, que deveria estar sempre aberta à criação e à inovação. Sendo assim, afirmava que o progresso científico dependia da retificação de erros e da superação de obstáculos epistemológicos, ou seja, de obstáculos à constituição de conhecimentos.

Para ele, em vez de julgar ou estabelecer princípios fixos para as ciências, a Epistemologia, ou Filosofia da Ciência, deveria procurar identificar possíveis obstáculos a novas descobertas. Ela deveria se constituir como “Filosofia do não”, ou seja, recusar a ideia de que as ciências adotam, como fundamento único, o empirismo ou o racionalismo. Bachelard afirmava que o conhecimento científico decorre de uma relação dialética entre o pensamento e a experiência. Além disso, ele destacava que a própria Epistemologia deveria estar aberta a mudanças. O motivo é que ela teria como objeto de reflexão uma Ciência dinâmica, que se modifica pela criação e pela reorganização dos conhecimentos científicos anteriores.

Para ler e refletir

Os textos a seguir tratam, respectivamente, das concepções de Kuhn, sobre os paradigmas científicos, e de Bachelard, sobre os obstáculos epistemológicos.

Os paradigmas adquirem seu status porque são mais bem-sucedidos que seus competidores na resolução de alguns problemas que o grupo de cientistas reconhece como graves. Contudo, ser bem-sucedido não significa nem ser totalmente bem-sucedido com um único problema, nem notavelmente bem-sucedido com um grande número. [...]
A maioria dos cientistas, durante toda a sua carreira, ocupa-se com operações de limpeza. Elas constituem o que chamo de ciência normal. Examinado de perto, seja historicamente, seja no laboratório contemporâneo, esse empreendimento parece ser uma tentativa de forçar a natureza a encaixar-se dentro dos limites preestabelecidos e relativamente inflexíveis fornecidos pelo paradigma. [...]
KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1998. p. 44-45.
Quando se procuram as condições psicológicas do progresso da ciência, logo se chega à convicção de que é em termos de obstáculos que o problema do conhecimento científico deve ser colocado. E não se trata de considerar obstáculos externos, como a complexidade e a fugacidade dos fenômenos, nem de incriminar a fragilidade dos sentidos e do espírito humano: é no âmago do próprio ato de conhecer que aparecem, por uma espécie de imperativo funcional, lentidões e conflitos. É aí que mostraremos causas de estagnação e até de regressão, detectaremos causas de inércia às quais daremos o nome de obstáculos epistemológicos. O conhecimento do real é luz que sempre projeta algumas sombras. Nunca é imediato e pleno. [...] Ao retomar um passado cheio de erros, encontra-se a verdade num autêntico arrependimento intelectual. No fundo, o ato de conhecer dá-se contra um conhecimento anterior, destruindo conhecimentos mal estabelecidos, superando o que, no próprio espírito, é obstáculo à espiritualização.
[...] É impossível anular, de um só golpe, todos os conhecimentos habituais. Diante do real, aquilo que cremos saber com clareza ofusca o que deveríamos saber. Quando o espírito se apresenta à cultura científica, nunca é jovem. Aliás, é bem velho, porque tem a idade de seus preconceitos. Aceder à ciência é rejuvenescer espiritualmente, é aceitar uma brusca mutação que contradiz o passado. [...]
BACHELARD, Gaston. A formação do espírito científico: contribuições para uma psicanálise da consciência. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005. p. 17-18.

espírito humano: razão, racionalidade.
imperativo funcional: imposição decorrente do funcionamento de algo.
aceder: concordar, consentir, juntar-se a.

Segundo Kuhn, a evolução da Ciência ocorre por meio da quebra de paradigmas aceitos anteriormente. De acordo com Bachelard, “o ato de conhecer dá-se contra um conhecimento anterior”. Ao aceitar essas teses, é possível confiar no conhecimento científico? Justifique sua opinião.

Organize as ideias

Registre, no quadro a seguir, os principais aspectos das concepções sobre Ciência abordadas nesta unidade.